A relação conflituosa entre ensinos bíblicos e ideologias políticas

Por Charles Manga Fonte :A Christian Guide to Political Engagement / Agência Internacional Adventista

Especialista explica sobre efeitos da tentativa de se dar um status quase divino às formas de compreensão do mundo à luz da política. Luta entre o que o texto bíblico ensina e o que os diferentes pensamentos de cunho político expressam é constante na vida de cristãos, especialmente nos últimos anos. Ideologias de natureza política e conceitos bíblicos combinam? Essa é uma pergunta que suscita dúvidas e divergências, especialmente nos tempos atuais.

O cristianismo, desde os primeiros séculos, sempre manteve uma relação ambígua com os poderes políticos. Em alguns momentos, religião e estado estiveram em campos bem diferentes; outras vezes, agiram em alianças para propósitos específicos. E como fica a relação das pessoas cristãs com as consideradas ideologias políticas. Até que ponto é possível conciliar uma vida pautada pelos ensinamentos bíblicos fundamentais e os conceitos que apresentam formas de se enxergar a organização social e política no mundo?

Agência Adventista Sul-Americana de Notícias (ASN) buscou entender o fenômeno atualmente, conversando de novo com um especialista. O professor David Koyzis, que já tinha sido entrevistado em 2022, possui doutorado (PhD) em Governo e Estudos Internacionais pela Universidade de Notre Dame, em Indiana, Estados Unidos. Ele é membro da First Hamilton Christian Reformed Church, em Hamilton, Ontário, Canadá. Koyzis é autor do livro publicado em português em 2021 chamado Visões e ilusões políticas – uma análise e crítica cristã das ideologias contemporâneas.

Em 2024, ele lançou outra obra em uma linha muito semelhante com o título Citizenship Without Illusions: A Christian Guide to Political Engagement , ainda não traduzido ao português. A última vez que conversamos, em 2022, a relação entre ideologias políticas e religiões, especialmente dentro do Cristianismo, encontrava-se em outro patamar. Essa relação – com seus efeitos nocivos – piorou desde então? Como você enxerga o cenário, em linhas gerais, no mundo de hoje? Não creio que muita coisa tenha mudado desde 2022. No ano passado, houve um número sem precedentes de eleições em todo o mundo, e muitos dos países que foram às urnas contam com grande contingente de cidadãos cristãos.

Os cristãos confessam com o salmista: “Nosso socorro está no nome do Senhor, que fez o céu e a terra” (Salmo 124:8). Nossa lealdade última pertence ao Deus que nos criou e redimiu em Jesus Cristo. Contudo, somos bombardeados por diversos concorrentes a essa lealdade, inclusive as várias visões ideológicas das quais trato no meu livro Visões e Ilusões Políticas. Quando uma ideologia idólatra revela suas verdadeiras cores, as pessoas se desiludem. O grande perigo, porém, é transferir a lealdade para outra ideologia igualmente idólatra, que supostamente compensa os erros da primeira.

Quando as pessoas percebem as falhas, por exemplo, do liberalismo ou do socialismo, tendem a optar por alguma forma de nacionalismo ou populismo. Mas, evidentemente, quando essas ideologias também não entregam o prometido, migra-se novamente para o liberalismo ou o socialismo. Parece um ciclo interminável. Ele só será rompido quando enxergarmos as ideologias pelo que são – ídolos que distorcem nossa visão e as ações que dela decorrem. Riscos à religiosidade saudável De maneira clara e objetiva, por que as ideologias políticas podem minar o exercício saudável da fé religiosa, especialmente do Cristianismo?


As ideologias tendem a minar a verdadeira fé no Deus que nos criou e redimiu ao oferecerem um caminho alternativo de salvação. Como seres humanos num mundo caído e pecaminoso, percebemos dolorosamente que as coisas não estão como deveriam. As notícias estão repletas de guerras, fomes, pestes, criminalidade, corrupção política e outros males mundo afora. Desejamos desesperadamente um mundo diferente. A Bíblia nos diz que, um dia, tudo será diferente – que Deus “enxugará dos [nossos] olhos toda a lágrima, e a morte já não existirá; já não haverá luto, nem choro, nem dor, porque as primeiras coisas passaram” (Apocalipse 21:4). Mas ainda não estamos lá. Os seguidores das ideologias exploram nosso desejo por um mundo melhor cultivando a impaciência em nossos corações. Ecoam os escarnecedores de 2 Pedro 3:4:

“Onde está a promessa de sua vinda? Porque, desde que os pais dormiram, tudo permanece como desde o princípio da criação.” Persuadem-nos a desviar os olhos de Cristo e tentar concretizar o Seu Reino por nossos próprios esforços. Mas esses esforços, por fluírem de uma fé falsa na humanidade, sempre fracassarão. Produzirão amarga decepção e males ainda piores que aqueles que pretendiam corrigir – triste destino de milhões no século passado que seguiram os falsos evangelhos do marxismo e do fascismo. Substituição da esperança escatológica – troca-se a esperança bíblica na restauração final de Deus por um projeto humano de salvação histórica. Cultivo de impaciência e descrença alimenta-se a dúvida sobre a fidelidade divina, levando a agir fora dos parâmetros bíblicos.

Decepções cíclicas e radicalização o fracasso de uma ideologia gera migração para outra extrema, reforçando ciclos de polarização e violência. Como você analisa o fenômeno do nacionalismo, citado em Visões e Ilusões Políticas, à luz do texto bíblico? Há quem sustente que cristãos precisam defender Estados ou nações cujos governantes se mostrem favoráveis a certos princípios bíblicos ou à tradição cristã. Até que ponto essa defesa é assimilação de ideologia política e até que ponto pode ser espiritualmente aceitável? Alguns observadores definem o nacionalismo como mera defesa legítima do sistema de Estados-nação, que divide a superfície da terra em comunidades políticas distintas.

Essa é uma definição adotada pelo filósofo político americano-israelense Yoram Hazony. Creio, porém, que há mais no nacionalismo do que isso. O coração humano busca sempre se comprometer com algo último; se não se volta para o Deus verdadeiro, vai se apegar a algo da criação. Esse algo é bom, pois foi criado por um Deus bom; mas podemos ficar tão deslumbrados com sua bondade que lhe atribuamos status quase divino. A nação torna-se um pseudo-deus atraente. Nacionalistas nos induzem a olhar além dos interesses individuais e buscar o bem da comunidade – o que, em certo sentido, é positivo: afinal, a Bíblia nos ensina a amar o próximo.

Entretanto, mesmo a melhor das comunidades pode exigir demais: pedir-nos que morramos ou matem por ela, suplantar o amor pelo cônjuge, pela família, pela terra natal local ou pela congregação. Nesse ponto, torna-se perigosa – um pseudo-deus. Qual deve ser a atitude de cristãos que afirmam se pautar pela Bíblia e de igrejas cristãs diante da excessiva interferência e mistura entre religião e política em diversos contextos? Não se trata simplesmente de “misturar” religião e política. Nossas atividades políticas, assim como todas as demais, refletirão sempre nossos compromissos últimos – nossas cosmovisões religiosas. Precisamos, porém, manter os olhos abertos para nossa tendência de supervalorizar aquilo que Deus, em Sua graça, nos concedeu.

No fim do ano passado publiquei Citizenship Without Illusions para orientar cristãos que desejam viver obedientemente ao exercer as responsabilidades de cidadania em suas respectivas coletividades terrenas. Considerando que nossos principais partidos e movimentos são moldados pelas ideologias discutidas em meu primeiro livro, esta obra busca ajudar os crentes a viver as implicações práticas de sua cidadania em comunidades políticas imperfeitas. Espero que em breve seja traduzida para o português, beneficiando o Brasil e outros países lusófonos.

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